domingo, 19 de abril de 2015

Comentários ao Código de Direito Canônico (1917)


COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE DIREITO

CANÔNICO PIO BENEDITINO(1917)

Tomo IV

Pelo Doutor Marcelino Cabreros de Anta, C.M.F.

BIBLIOTECA DE AUTORES CRISTÃOS –  BAC– MADRI – MCMLXIII (1963)


Terceira Parte

 

Das penas contra cada um dos delitos

 

Título XI – Dos delitos contra a fé e a unidade da Igreja

 

480. Nesta terceira parte encontramos uma exposição sistemática e científica, realizada pela primeira vez no ordenamento canônico, das penas vigentes na Igreja Latina. Podem distinguir-se nela duas partes claramente distintas: os títulos 11-15 contém delitos comuns a todos os fiéis, e os títulos 16-19 delitos próprios de clérigos ou de religiosos. Dentro de cada parte se observa que os delitos estão colocados, em geral, em ordem de gravidade descendente, no qual a obra dos codificadores está claramente inspirada pelo livro de Hollweck Die kirchlicken Strafgesetze. A ordem da exposição é a seguinte:

 

I.                   Delitos contra a fé e a unidade da Igreja.

II.                Delitos contra a religião.

III.             Delitos contra as autoridades, pessoas e coisas eclesiásticas.

IV.             Delitos contra a vida, a liberdade, a propriedade, a boa fama e os bons costumes.

V.                Crime de falsidade.

VI.             Delitos na administração e recepção de ordens e outros Sacramentos.

VII.          Delitos contra as obrigações próprias do estado clerical ou religioso.

VIII.       Delitos na colação, recepção e abandono das dignidades, ofícios e benefícios eclesiásticos.

IX.             Abusos de potestade ou ofício eclesiástico.

 

 

481. A matéria é abundantíssima e sua exposição completa ultrapassaria muito os limites deste livro. Por isso nosso comentário será desigual, pois temos cuidado especialmente dos delitos que por um ou outro motivo nos parece que exigem atenção; em outros, o comentário é breve e ainda brevíssimo.

Para evitar repetições nos comentários que seguem, recordaremos aqui que o intérprete deve ter em conta as normas penais gerais expostas até aqui; destacaremos por sua frequentíssima aplicação as seguintes:

 

a) O princípio de interpretação estrita da lei penal (can.19 e 2219).

b)  A atenção à interpretação doutrinal do direito antigo, sobretudo tratando-se de delitos que antes estavam na Const. Aposticae Sedis (Pio IX), donde precedem grande parte das censuras automáticas codificadas (can.6 n.2-4).

c) As normas do can.2229 § 2 nos delitos que requerem imputabilidade plena.

d)  Nas penas vindicativas preceptivas, a possibilidade da condenação condicionada (can.2288), da correção judicial em lugar do juízo criminal (can.1947ss) e os poderes discricionais do juiz para diminuir, suspender ou suprimir a pena (can.2223).

e) Nas penas automáticas, se o delito é formal, se consuma ao realizar-se o ato proibido ou omitir-se o preceituado; se é material, ao verificar-se o resultado que a lei pretende evitar (supra, n.304).

f) A punibilidade dos codelinquentes e dos autores de tentativa e de frustração é aplicável a todos os delitos que admitem esses modos de delinquir, ainda que na lei não se mencionem.

 

 

Os delitos contra a fé e a unidade da Igreja

  

482. Delitos de lesa Igreja. – Em todas as legislações penais ocupam lugar preferencial as leis encaminhadas a proteger o Estado, sua integridade e sua segurança, pois o ataque a estes interesses fundamentais da organização social destruiria os fundamentos do ordenamento jurídico. Também o Código de Direito Canônico cede o primeiro lugar desta terceira parte aos delitos contra a Igreja, ainda que esta seja indefectível pela promessa de seu divino Fundador. Porque a preocupação suprema de todo ordenamento jurídico é a conservação da instituição a que serve o dito ordenamento. E ainda que todos os delitos desta terceira parte do livro V sejam “contra a Igreja” em sentido lato, especificamente só se podem chamar assim os crimes que atentam à constituição divina da Igreja, a sua liberdade e a seus direitos. Deles tratam-se os títulos 11, 12 e 13, que sancionam delitos contra a fé e a unidade da Igreja, contra a Religião e contra as autoridades, pessoas e coisas eclesiásticas, respectivamente. A primeira classe, de que fala nosso título 11, pertencem os atos de rebeldia contra as verdades reveladas, que constituem o depósito mais apreciado da Igreja e a razão de sua existência: tais são a apostasia, heresia e cisma (can.2314-17), o uso de livros proibidos (can.2318) e a comunicação com acatólicos em coisas sagradas (can.2319).

 

I.                  APOSTASIA, HERESIA, CISMA

 

Canon 2314

§ 1 . Todos os apóstatas da fé cristã e todos e cada um dos hereges ou cismáticos:

1º  Incorrem ipso facto em excomunhão;

2º Se depois de admoestados não se emendam, devem ser privados de todo benefício, dignidade, pensão, ofício ou outro cargo que tiverem na Igreja, que sejam declarados infames, e aos clérigos, após a admoestação repetida, que sejam depostos;

3 º Se houverem dado o seu nome a uma seita não católica ou tiverem aderido a ela publicamente, são ipso facto infames e, tendo em conta a prescrição do cânon 188, n. 4, que os clérigos, depois de uma advertência ineficaz, devem ser degradados.

 

§ 2 . Está reservada de modo especial à Sé Apóstólica a absolução da excomunhão, tratada no  § 1, quando haja de dar-se no foro da consciência. Entretanto, se o delito de apostasia, heresia ou cisma houver sido levado de qualquer forma, ainda que seja por confissão voluntária, ao foro externo do Ordinário do lugar, pode este, mas não seu Vigário Geral sem mandato especial, absolver no foro externo ao arrependido, em virtude de sua autoridade ordinária,  a prévia abjuração, feita juridicamente e observando tudo o que no direito deve observar-se; e ao que nesta forma tiver sido absolvido, pode depois qualquer confessor absolvê-lo do pecado no foro da consciência. Tem-se  por feita juridicamente a abjuração quando se faz ante ao mesmo Ordinário do lugar ou seu delegado e, ao menos, ante duas testemunhas.

 

No can.2314 são assinalados três delitos.

 

483. A. Heresia (airesis = eleição, implica a idéia de abraçar uma doutrina arbitrariamente). – Consiste em negar com pertinácia uma verdade da fé ou em duvidar dela com obstinação (“Error hominis baptizati in intellectu voluntario contra aliquem articulum fidei cum pertinacia coniunctus”- Santo Tomás, Summa Theol.2-2,q.II,I.). São verdades de fé, as que a Igreja propõe como tais, tanto por um ato de definição solene, tanto em sua atividade magisterial e ordinária (can.1323). Assinalar em concreto quais sejam estas verdades, corresponde à teologia. O delito se comete negando ou duvidando com pertinácia (can.1325§2), é dizer, com consciência de que o que se nega ou duvida se expressa contrário a uma verdade de fé. O delito é formal, sem frustração possível, e consuma-se no momento em que a negação ou a dúvida ficam externamente manifestadas. Tampouco cabe tentativa, porque, se os atos preparatórios não manifestam sentido herético, não ficam satisfeitas as condições do can.2212 § I (cf. supra), e se o manifestam, o crime está consumado.

No delito cabem duas figuras: a heresia simples e a heresia com adesão a seita acatólica. Segundo a lei, esta adesão faz-se de duas maneiras; pelo fato de inscrever-se nela como sócio ou, ainda sem inscrição, pela participação pública nas reuniões e atos cultuais da seita; ou por outros atos públicos que inequivocamente demonstrem adesão; por exemplo, fazendo a propaganda dela. A seita acatólica da qual aqui falamos é uma associação religiosanão católica. Os que se inscrevem e, associações ou seitas atéiasdevem ser considerados para todos os efeitos como aderentes a seitas acatólicas: alguns consideram que fala-se neste caso dos que se afiliam ao partido comunista, por ser associação que professa o ateísmo (infra, n.511). As seitas não religiosas (maçonaria, anarquismo, etc.) não estão aludidas pela lei no conceito de seita acatólica.

 

 

484. Penas contra os hereges.

 

I.º Excomunhão automática. -  Esta excomunhão oferece uma notável singularidade, porque para a absolução no foro interno fica reservada especialmente à Santa Sé, e no foro externo, ao Ordinário local, o qual a outorga prévia abjuração. Sempre que o delito seja levado ao foro do Ordinário, incluso por confissão espontânea do réu oculto, aquele pode usar de suas faculdades sem necessidade de recorrer à Santa Sé, em caso contrário, se o delito não é público, ou ainda sendo, se não houve escândalo, pode bastar a absolução no foro interno, segundo as regras que já conhecemos (supra, can.2251 e 2254).

 

2.º A abjuração. – Não devem fazê-la os impúberes (can.2230). Enquanto aos que se convertem da heresia, se não estão batizados validamente, não incorreram na censura e, portanto, não há mais que batizá-los. Se seu batismo foi válido, devem abjurar e receber a absolução, depois do qual podem receber a absolução sacramental de qualquer confessor. Se o batismo for duvidoso, a ordem da reconciliação é: abjuração, batismo condicionado, confissão sacramental e absolução condicionada.

Enquanto ao procedimento da abjuração, o legislador explica que deve fazer-se juridicamente ante o Ordinário local ou seu delegado e duas testemunhas, “observando o que deve observar-se”, cláusula na qual a lei alude às inquisições prévias para determinar a necessidade da abjuração. O rito está descrito no Pontifical Romano; o Santo Ofício, en 1859, promulgou uma fórmula mais breve para quando o que recebe a abjuração é um sacerdote delegado. O Ordinário pode utilizar um rito mais abreviado; a tendência atual é suprimir os ritos e as frases mortificantes, e contentar-se com o elemento positivo da profissão de fé católica.

 

3.º Penas “ferendae sententiae”. – Ademais da excomunhão explicada até aqui, os hereges devem ser privados de todo cargo ou pensão que tenham na Igreja, devem ser declarados infames (infâmia de direito) e se são clérigos, devem ser depostos. Trata-se de penas vindicativas preceptivas, mas antes de impô-las há que admoestar ao herege para que se converta e, tratando-se de depor ao clérigo, é necessária uma dupla admoestação. Somente quando as admoestações resultam inúteis se poderá proceder contra o herege, seguindo as normas processuais que correspondam à pena que se haja de impôr.

                                                                                  

4.º Penas especiais contra a segunda figura. – Como temos dito, a segunda figura consiste na heresia agravada com adesão à seita acatólica. As penas são: para todo delinquente, infâmia automática, e para os clérigos, degradação preceptiva (observando as regras dadas: supra, can.2305 §2), com perdaautomática dos ofícios (can.188 n.4).

 

 

485. B. Delitos de apostasia e de cisma. – A palavra apostasia significa separação ou alejamento (grego. apo-stasia). Apóstata é o que renega da fé de uma maneira total; o herege nega ou duvida de algum dos artigos da fé, mas o apóstata rechaça a fé em todo seu conjunto, de modo que, embora admitindo algumas ou ainda muitas das verdades que são de fé, ele não as aceita como de fé, senão que rechaça totalmente a fé.

O cisma (greg. Sjisma = excisão, divisão) consiste em desvincular-se da unidade da Igreja. A heresia e a apostasia são delitos que diretamente se opõem à fé: o cisma, ainda quando implica uma negação prática do Primado do Romano Pontífice, diretamente não ataca às verdades da fé, mas sim ao vínculo jurídico e de caridade que une os fiéis entre si e com o Romano Pontífice. Por isso o delito de cisma pode-se cometer de duas maneiras, que constituem outras tantas figuras delitivas: ou recusando submeter-se à autoridade do Papa como cabeça visível da Igreja, ou negando-se a ter comunicação religiosa com os membros da Igreja submetidos ao Papa, precisamente por que o são. Estes dois crimes devem ser externos, como temos dito da heresia, e podem agravar-se, constituindo figura especial quando o apóstata ou o cismático se afiliam a uma seita. Tratando-se de apóstatas, a seita pode não ser cristã; por exemplo, o judaísmo ou o maometismo.

As penas são as mesmas que para a heresia.

 


II - DELITOS PRÓXIMOS A HERESIA

 

Canon 2315

O suspeito de heresia, que admoestado não faz desaparecer a causa da suspeita, deve apartar-se dos atos legítimos, e se for clérigo, deve ademais ser suspenso a divinis, uma vez repetida inutilmente a admoestação; e se o suspeito de heresia não emenda-se no prazo de seis meses cumpridos depois de haver incorrido na pena, deve ser considerado como herege e sujeito às penas dos hereges.

 

Canon 2316

É suspeito de heresia aquele que espontaneamente e intencionalmente ajuda de qualquer modo à propagação da heresia ou participa in divinis com os hereges, contra o que prescreve o Canon n.1258.

 

 

486. Suspeita de heresia (can. 2315 e 2316). – A suspeita de heresia não é um delito nem uma pena, senão uma situação jurídica resultante do cometimento de certos atos ilícitos, parte dos quais estão assinalados expressamente nas leis penais e parte estão englobados na formulação geral do can. 2316, cuja determinação concreta pertence ao juiz ou ao superior. Os atos concretos dos quais resulta suspeita de heresia são: o participar ativamente nos ritos religiosos acatólicos (can. 2316 junto com can.1258 § I); o contrair matrimônio com pacto de educar a prole fora da Igreja (can.2319 § 2); a profanação da Eucaristia (can.2320); a apelação ao Concilio Universal dos atos do Pontífice reinante (can.2332); a perseverança obstinada na excomunhão durante um ano (can.2340 § 1); a simonia na administração de sacramentos (can.2371). Ademais destes atos que automaticamente produzem suspeita de heresia, o juiz ou o superior pode determinar a existência dessa suspeita sempre que alguém realize atos que favoreçam a difusão da heresia, tais como ajuda material, propaganda oral ou escrita, louvores do livro herético, etc. Os termos da lei são amplos e permitem ao superior acudir a todo sintoma de perigo, mediante a declaração de suspeita de heresia.

O suspeito de heresia recebe uma admoestação canônica pela qual é convidado a suprimir a causa da suspeita, desistindo de seus atos ou fazendo por apagar seus delitos, se este é o caso, e sempre reparando o escândalo. A recusa do admoestado que nega-se a suprimir a causa da suspeita constitui o delito figurado no can.2315. O delito admite três graus para os clérigos e dois para os leigos.

 

 

PENALIDADE: a) A recusa simples indicada penaliza-se com proibição dos atos legítimos eclesiásticos, que deve impor-se obrigatoriamente; b) tratando-se de clérigos,  faz-se outra admoestação; se também esta resultar-se inútil, teremos o segundo grau do delito, cuja pena é suspensão medicinal preceptiva a divinis; c) o terceiro grau (segundo para os não clérigos) realiza-se automaticamente pelo transcurso de seis meses sem emenda. O tempo conta-se, para os leigos, à partir da proibição dos atos legítimos, e para os clérigos, à partir da data da suspensão. O delinquente neste terceiro grau tem a consideração jurídica de herege para todos os efeitos penais (supra, canon 2314).

 

Canon 2317

Os que obstinadamente ensinam ou defendem, em público ou em privado, uma doutrina que certamente tenha sido condenada pela Sé Apostólica ou por algum Concílio Geral, ainda que não tenha sido como formalmente herética, devem ser apartados do ministério da pregação da palavra de Deus, de ouvir confissões sacramentais e de todo cargo docente, salvas as demais penas que possa haver decretado a sentença de condenação, o que o Ordinário, depois da admoestação, houver considerado necessárias para reparar o escândalo.

 

487. Defesa de doutrina condenada (can.2317). – Trata-se aqui de doutrina condenada com uma qualificação que não chegue a herética (pois neste caso seria de aplicação o can.2314) ou simplesmente reprovada sem qualificação alguma. Doutrina é toda afirmação teórica referente à fé ou a costumes; não tem consideração de doutrina as normas práticas, os ensaios de oportunidade, as afirmações históricas.

O delito reveste duas figuras, que são ensinar ou defender; em qualquer uma delas exige-se pertinácia na conduta delitiva (can.2229 § 2). O sentido óbvio dessas palavras exime de caráter delitivo a outras condutas de matizes distintas do ensino ou a defesa. Ensinar é manifestar uma doutrina à quem a ignora, com sugestão implícita para que seja aceita; não é, portanto, a mera expressão de uma opinião própria, a demonstração de que tal doutrina não está condenada, etc. Defender é apoiar com razões e argumentos, falsos, desde logo, posto que tratam-se de erros.

 

PENALIDADE: I.º Penas preceptivas. São a proibição de pregar, a de ouvir confissões sacramentais e a de ensinar qualquer matéria nas escolas oficiais da Igreja e também nas escolas civis, tratando-se de assuntos pertinentes à ciência sagrada ou relacionados com ela; assim parece deduzir-se do can.1381§I-3. Ademais, se o documento pontifício pelo qual condena-se uma doutrina contém penas preceptivas contra os que a ensinam ou defendam, essas penas tem seu valor à margem das do Código.

                           2.º Penas Facultativas. Se o Ordinário, local ou religioso, estimar oportuno, pode adicionar às penas do Código outras facultativas para reparar o escândalo; para impô-las deve utilizar previamente a admoestação canônica.

 

 

Título do Original:

COMENTARIOS AL CODIGO DE DERECHO CANONICO

Con el texto legal latino y castellano

BAC – BIBLIOTECA DE AUTORES CRISTIANOS – MADRID – MCMLXIII

Tomo IV – Cánones I999 – 2414 – Páginas 454-459 (Canones 2314, 2315, 2316 e 2317)

 

Pelos Doutores: Marcelino Cabreros de Anta, C.M.F.

                   Arturo Alonso Lobo, O. P.

                   Sabino Alonso Moran, O.P.

Prólogo do Exmo. E Revmo.  + Sr. Dr. Fr. Francisco Barbado Viejo, Bispo de Salamanca.

Imprimatur: + Fr. Franciscus, O.P., Episcopus Salmantinus

                     Salmanticae, die 10 ianuarii 1962

Fonte:
http://doctorisangelici.blogspot.com.br/

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