terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

PODEMOS "JULGAR O PAPA"?



Creio que nossos interlocutores até concordariam com o fato do Papa-herege cair automaticamente de seu pontificado em caso de heresia manifesta, mas com uma ressalva. Eles diriam que ainda que se perdesse de fato a jurisdição, nenhum fiel poderia constatar seguramente tal perca. Por isso todos deveriam aguardar o julgamento oficial da Igreja a respeito do assunto, e enquanto isso não acontecesse os fiéis somente poderiam resistir e rezar. Ninguém poderia constatar a pertinácia dele com absoluta certeza e muito menos alegar seguramente a conseqüente perca de seu pontificado. E penso que nos seria dito algo do tipo: "veja o que escreveu São Bellarmino nesta passagem que você nos apresenta, que o Papa-herege pode ser julgado e punido pela Igreja. Logo os fiéis não podem fazê-lo".
A esta importante objeção, a qual não negamos a força, pensamos poder responder demonstrando que a adoção de uma posição mais "radical" por parte dos fiéis não feriria a hierarquia da Igreja e nem a verdade católica que diz que "ninguém pode julgar o Papa". Para demonstrar isso, novamente citaremos algumas passagens de papas e de santos doutores que julgamos extremamente interessantes e que nos parecem indicar de forma suficiente isso que sustentamos, bem como a questão da possibilidade de aferirmos a pertinácia dos hereges, ainda que seja o Papa. Sobre isso, inicio destacando o ensinamento feito pelo Cardeal de Lugo, considerado por Santo Afonso de Ligório simplesmente como "o maior teólogo desde Santo Tomás". No trabalho escrito pelo sedevacantista John Daly (05) e que trata justamente desta possibilidade de julgar a heresia (e o herege) o autor diz o seguinte:
"(o Cardeal de Lugo) dedicou o estudo mais detalhado de que estamos cientes à questão da pertinácia exigida para tornar alguém um herege. Ele discute se um aviso é necessário para estabelecer que alguém é um herege e conclui, após considerar a opinião de todos os teólogos e canonistas notáveis, que tais avisos nem sempre são necessários -- nem tampouco são sempre exigidos na prática pelo Santo Ofício. A razão para isso é que o aviso serve apenas para estabelecer que o indivíduo está ciente da oposição que existe entre a opinião dele e o ensinamento da Igreja. Se tal oposição já fosse evidente, o aviso seria supérfluo (Disputationes Scholasticae Et Morales, Disp. XX, De Virtute Fidei Divinae, Sectio VI, n. 174 et seq.)".

Portanto, Cardeal de Lugo ensina que as monições por um superior nem sempre são necessárias e exigidas na prática pelo Santo Ofício. E isso depois de considerar o ensinamento de "todos os teólogos e canonistas notáveis". Desta maneira respondemos a pergunta feita sobre as monições previstas pelo Código de Direito Canônico: de acordo com as circunstâncias, elas nem sempre são necessárias! Ainda neste trabalho John Daly nos dá outra informação importante relacionada a esta questão. Vejamos:
"(...) o cânone 188/4 nunca foi objeto de interpretação oficial emanando da Santa Sé. Em contrapartida, ele tem um cânone-irmão -- o cânone 646/1 n. 2, concernente à vida religiosa -- que foi explicado oficialmente e que lança muita luz sobre o cânone 188/4 também e sobre todo esse princípio segundo o qual os indivíduos privados podem reconhecer hereges manifestos independentemente de condenação autoritativa. Isso porque o cânone 646/1 n. 2 declara que qualquer religioso que abandone publicamente a Fé Católica precisa por esse próprio fato ser considerado legitimamente demitido. O segundo parágrafo do mesmo cânone requer que o fato em questão (heresia pública e conseqüente demissão automática) seja declarado por um superior. Os canonistas concordam que o abandono público da Fé Católica cumprir-se-ia por qualquer caso de heresia pública. Em vista do segundo parágrafo, a Santa Sé foi consultada sobre se a demissão dependia da declaração do superior. A Comissão para a Interpretação do Código respondeu, em 30 de julho de 1934, que negativo. O canonista Jone explica que a declaração do superior não envolve qualquer processo/julgamento e serve simplesmente para tornar conhecidos fatos que já tiveram efeito: a heresia e a demissão que ela produz".
Examinemos agora algumas passagens importantes da Tradição da Igreja neste sentido. Comecemos pela Bíblia. No novo testamento São Paulo Apóstolo escreveu aos Gálatas:

"Mas, ainda que alguém - nós ou um anjo baixado do céu - vos anunciasse um evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema" (Gal. 1, 8).

Para comentar esta importante passagem chamaremos em nosso socorro São Vicente de Lérins, que em sua obra "Commonitorium" (06) teceu ótimo comentário sobre esse ponto. Ele explica que o "ainda que nós" inclui até mesmo São Pedro. Vejamos:

"8 (...) a autoridade do apóstolo se manifestou então com maior severidade: "mas, ainda que alguém - nós ou um anjo baixado do céu - vos anunciasse um evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema". (gl 1,8) E por que disse São Paulo ainda que alguém – nós e não ainda que eu mesmo? Porque quis dizer que se inclusive Pedro, André, João, ou o colégio inteiro dos apóstolos anunciasse um evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema. Tremendo rigor, com ele que, para afirmar a fidelidade á fé primitiva, não se exclui nem a si mesmo nem aos outros apóstolos".

Percebamos, então, que de acordo com o Santo é exatamente a aplicação de um "tremendo rigor" que nos obriga a anatematizar qualquer herege, inclusive Pedro (se for o caso), inclusive o Papa! Mas como se aplicaria na prática esta teoria? Para responder a esta pergunta, citaremos agora o ensinamento prático de alguns papas sobre o assunto. Isso fará com que nossos interlocutores possam perceber a prática sedevacantista atual sendo ensinada por alguns daqueles que ocuparam a Cátedra de Pedro (07).
Comecemos pelo Papa São Símaco. No ano de 503 o Sínodo Romano expôs, sob este Papa, a doutrina da Igreja dizendo que o Romano Pontífice não é julgado por ninguém "nisi e recta fide exorbitaverit", isto é, "a não ser que ele incida em pecado contra a fé" (Johannes Harduinus, Collectio, 2,984).
Mas como se pode "julgar o Papa"? Não é isso algo que ninguém pode fazer, ou somente a Igreja pode fazê-lo? Aliás, permitam-nos uma digressão neste momento: uma leitura mais atenta da bula Una Sanctam nos levaria a concluir que nem a Igreja poderia fazê-lo, pois que o Papa Bonifácio VIII ensina que "se o poder da autoridade suprema se desvia, só Deus o poderá julgar, pois a nenhum homem é dado esse poder” (Dz. 469). Levando este ensinamento ao pé da letra, sem supor nenhuma exceção, poderia-se redargïr São Roberto Bellarmino e todos os santos doutores que disseram que a Igreja poderia julgar o Papa-herege declarando ser isto inteiramente falso, pois como diz a bula "só Deus o poderá julgar" (logo, nem a Igreja pode fazê-lo).
Mas voltando ao assunto, perguntamos: o que quis dizer São Símaco com este ensinamento? O Papa Inocêncio III, em um de seus grandes sermões feito no ano de 1198, irá explicar esta questão falando de uma forma que nos permite compreender perfeitamente o assunto. Vejamos:

"Como poderei eu consolidar os demais (na fé) a não ser que esteja eu mesmo consolidado na fé? Isso, pelo testemunho do senhor, como é sabido, pertence, de modo principal, ao meu cargo (ad officium meum): ‘eu orei por ti’ (lc 22, 32)...portanto, a fé da sede apostólica jamais desfaleceu em perturbação alguma, mas permaneceu íntegra e incólume, para que permanecesse inquebrantável o privilégio de Pedro. De tal modo a fé me é necessária que, tendo eu só a Deus por juiz nos demais pecados, entretanto, no pecado que eu cometesse contra a fé, poderia eu ser julgado pela Igreja porque quem não crê, já está julgado (Jo, 3, 18)" (...) "Pode o Romano Pontífice ser julgado pelos homens, ou antes, ser ele mostrado como já julgado (por Deus) se ele infringir em heresia porque quem não crê já está julgado (Papa Inocêncio III – IV sermão sobre o Romano Pontífice - p. l. 217, 656-672 - passagem extraída do livro "A nulidade dos papas – bispos e concílios da "nova Igreja Católica" de autoria do Dr. Homero Johas – Editora Maia).
Eis um ensinamento de um Papa que vale ouro. Aqui Inocêncio III vai distinguir dois tipos de julgamentos. O primeiro, propriamente jurídico, onde é dito (como São Roberto Bellarmino disse depois) que no pecado cometido contra a fé o Papa pode ser julgado pela Igreja. Logicamente um julgamento onde ao final é emitida uma sentença eclesiástica infalível, a qual todos estão obrigados a seguir. Depois de dizer isso, o Papa então vai ensinar aos fiéis aquilo que mais nos interessa neste momento e que é o ponto fundamental da discordância entre tradicionalistas e sedevacantistas. Ele diz que o Romano Pontífice em caso de heresia poderia "ser julgado pelos homens". Porém, como esta frase dita simplesmente assim, sem maiores explicações, levaria os fiéis a confusão, eis que o Papa faz a necessária distinção: "ou antes, ser ele mostrado como já julgado (por Deus) se ele infringir em heresia porque quem não crê já está julgado" .
Ou seja, existem dois tipos de julgamentos. O primeiro, propriamente jurídico-eclesiástico compete somente a Igreja e a sentença final obriga a todos. É o julgamento na plenitude do termo. E o segundo, um "julgamento pessoal", não jurídico e nem infalível, que nada mais é do que a possibilidade de uma "antecipação" do julgamento oficial da Igreja a partir da constatação da heresia pertinaz do Papa, onde o fiel não propriamente o julga (pois isso ninguém pode fazer), mas apenas CONSTATA (esta é a palavra) sua heresia e o tem a partir daquele momento como "já julgado" (utilizando palavras do próprio Cristo). Isso desde que o fiel esteja diante diante de um Papa manifestadamente herético, o qual é absolutamente certo que conhece plenamente a doutrina da Igreja Católica e a rejeita conscientemente (que é o que constitui a pertinácia) (08).
Este ensinamento do Papa Inocêncio é tão forte que faz eco até os dias de hoje, quando os teólogos entendem que ele não foi “abrogado” pelo Código de Direito Canônico de 1917:

"Não pode ser provado, no entanto, que o Pontífice Romano, como um professor particular, não pode tornar-se um herege - se, por exemplo, ele teria pertinazmente (contumasmente) negado um dogma previamente definido. Essa impecabilidade nunca foi prometida por Deus. Com efeito, o Papa Inocêncio III admite expressamente que tal caso é possível. (...) "Se realmente essa situação iria acontecer, ele [o Pontífice Romano], por direito divino, cairia (perderia) de seu cargo, sem qualquer sentença, na verdade, sem sequer uma declaração. Ele que professa abertamente heresia coloca-se fora da Igreja, e não é provável que cristo iria preservar o primado da sua Igreja em alguém (ou em um modo) indigno. Portanto, se o Pontífice Romano fosse a professar heresia, antes de qualquer sentença condenatória (o que seria impossível qualquer jeito), ELE PERDERIA SUA AUTORIDADE" (Coronata — Institutions Juris Canonici, 1950).

Eis as palavras de Inocêncio III explicada pelos teólogos! Ora, se como está dito aí o Papa-herege perde a sua autoridade por causa da heresia manifesta como então os fiéis não poderiam reconhecer que ele perdeu a autoridade justamente quando é o amor pela fé Católica que nos obriga a desobedecê-lo? Inequivocadamente, isto que é dito corrobora a posição sedevacantista adotada atualmente por aqueles que nada mais são do que simples católicos apostólicos romanos, que fazem o possível para se manter em Estado de Graça e que crêem em tudo aquilo que a Igreja ensinou desde São Pedro até Pio XII.
Continuando as citações que demonstram a possibilidade do fiel "julgar o Papa", agora que está mais claro o significado desta expressão que corretamente compreendida não contraria a verdade católica, vejamos o que prescreveu o Cânon "Si Papa", cujo ensinamento foi atribuído por Santo Afonso de Ligório ao Papa São Bonifácio Mártir:

"Ninguém ouse redargüir as culpas de um Papa, porque ele julga a todos e não deve ser julgado por ninguém, a não ser que seja encontrado como desviado da fé (Cânon "Si Papa" Decretum, v, 23, Parte I, Dist. XI, C. 6).

Ou seja, o Papa legítimo não deve ser julgado por ninguém "a não ser que seja encontrado como desviado da fé". É o mesmíssimo ensinamento dos papas São Símaco e Inocêncio III! E como os fiéis presumidamente não tem sequer condições de emitirem uma sentença jurídica sobre o Papa herege (pois isso é algo que somente a Igreja pode fazer, e devemos presumir que São Bonifácio Mártir sabia desta mais elementar doutrina católica), novamente fica provado que o fiel tem o direito de fazê-lo em âmbito pessoal, de acordo com sua consciência.
Apenas para que fique bem claro a origem deste ensinamento, no século XI monge Graciano (que provavelmente era conselheiro do Papa Inocêncio II) compilou inúmeros cânones antigos da Igreja. Entre estes cânones reunidos está este que recebeu o nome de "Si Papa" Depois desta obra de Graciano se produziu um grande florescimento da ciência e das instituições de direito canônico e por isso ele é considerado o pai do CIC (09).
Voltando ao Cânon "Si Papa", é certo que ele chegou a provocar reações anti clericais tremendas, pois os inimigos da Igreja passaram a dizer: "se o Papa é capaz de cair em heresia, ele não pode ser infalível". Foi neste contexto que, para defender a sã doutrina Santo Afonso ensinou que se o Papa caísse em heresia ele estaria privado do pontificado no mesmo instante (como foi mostrado na primeira parte deste trabalho). Vejamos novamente as palavras de Santo Afonso:

"Os nossos adversários objetam com o cânon ‘si papa’, no qual o Papa São Bonifácio Mártir declara que o Soberano Pontífice não deve ser julgado por ninguém, a menos que ele seja depreendido como desviado da fé (cap. 6, dist. 40). Nossos contraditores argumentam: ‘se o Papa é capaz de cair em heresia, ele não pode ser infalível’. Respondemos: se ele cair em heresia como pessoa privada, estaria privado do pontificado no mesmo instante, porque não poderia ser cabeça da Igreja estando fora dela".
Portanto, eis o ensinamento de Santo Afonso diante deste Cânon: o Papa-herege está privado do pontificado no mesmo instante. São Roberto Bellarmino também comentou esta passagem. Vejamos:
"Aqueles cânones não querem dizer que o Pontífice como pessoa privada possa errar hereticamente, mas tão só que o Pontífice não pode ser julgado. Visto que não é do todo certo que ele possa ou não ser herege o Pontífice, por isso, para maior cautela, acrescenta uma condição: a não ser que seja herege" (São Roberto Bellarmino, ver De Romano Pontífice, 1.4, c.7).

Portanto, o Pontífice pode ser julgado se for herege. E assim como alguém que mata uma pessoa inocente já é tida como assassina pelas pessoas que conhecem este fato antes da condenação da justiça, assim também o Papa-herege, assassino da fé Católica é tido como deposto antes do julgamento formal que somente a Igreja pode fazer.
Os teólogos nos séculos XII e XIII também comentaram esta situação. O bispo de Chartres Yves recordou esta lei ao bispo de Lyon João:

"Não queremos privar do poder das chaves principais da Igreja quem quer que se assente na sede de Pedro; a menos que manifestadamente ele se afaste da verdade do Evangelho" (p.l. 62, 240).

O mesmo dizemos nós, sedevacantistas, com relação a esta crise! Incrível como estas palavras se aplicam aquilo que sentimos hoje!
Agora vejamos novamente um ensinamento feito pelo Papa Paulo IV na bula Cum Ex Apostolatus Officio. Vejamos somente o que está ensinado logo na introdução deste documento:

"Considerando a gravidade particular desta situação e seus perigos ao ponto que o mesmo Romano Pontífice, que como vigário de Deus e de Nosso Senhor tem o pleno poder na terra, e a todos julga e não pode ser julgado por ninguém, se fosse encontrado desviado da fé poderia ser redargüido (...)".

Aqui, praticamente o mesmo ensinamento de São Símaco, de Inocêncio III e de São Bonifácio Mártir! E desta vez em um documento oficial da Igreja! De novo é colocada de forma absolutamente clara a doutrina católica que ensina que ninguém pode julgar o Papa, ensinamento este sempre feito com ressalvas. Ora, a palavra "redargüir" possui entre vários sinônimos também o sentido de "acusar" ou "recriminar". Com efeito, os hispânicos traduzem o termo latino "redargui" por "acusado" (10). ora, isso significa que o Papa encontrado desviado da fé poderia ser acusado, inclusive recriminado! E acusado de que, recriminado como? Pode-se ler o restante da bula para ver até que ponto os fiéis podem chegar....

http://cumexapostolatusofficio.blogspot.com.br/2009/09/sedevacantismo-uma-posicao-defensavel.html

Um comentário:

  1. Prezado, salve Maria.

    Eu ainda acrescentaria ao texto a seguinte passagem:

    "(...) Nenhum mortal terá a presunção de argüir o Papa de culpa, pois, incumbido de julgar a
    todos, por ninguém deve ser ele julgado, a menos que se afaste da fé" (Decretum de Graciano - atribuído ao papa São Bonifácio mártir).

    Compare este ensinamento com o da bula de Paulo IV: para o pensamento medieval os verbos "arguir" e "redarguir" são usados no sentido de julgar os maus atos apontando pela apostasia do papa desviado.

    Cordialmente,

    Sandro de Pontes

    ResponderExcluir