sexta-feira, 29 de novembro de 2013

"A Heresia Anti-litúrgica", por Dom Prosper Guéranger, OSB

Dom Guéranger



A Heresia Anti-litúrgica
Servo de Deus Dom Prosper Louis Paschal Guéranger, OSB
Abade de Solesmes
Extraído de sua obra “Institutions Liturgiques”
(Cap. XIV – Da heresia anti-litúrgica e da Reforma Protestante do séc. XVI,
considerada em sua relação com a liturgia)
1840

Tradução do francês, com consultas ao inglês,

Para se dar uma ideia dos estragos da seita anti-litúrgica, parece-nos necessário resumir a marcha dos pretensos reformadores do cristianismo ao longo de três séculos, e apresentar o conjunto de suas ações e de sua doutrina sobre a purificação do culto divino. Não há espetáculo mais instrutivo e mais apropriado para se fazer compreender as causas da rápida propagação do protestantismo. Certamente aí se verá a obra de uma sabedoria diabólica agindo e levando infalivelmente a vastos resultados.

I. A primeira característica da heresia anti-litúrgica é o ódio pela Tradição nas fórmulas do culto divino. Não se pode negar esta característica especial em todos os hereges, desde Vigilâncio até Calvino, e a razão é fácil de se explicar. Todo sectário, querendo introduzir uma nova doutrina, encontra-se inevitavelmente na presença da Liturgia, que é a tradição em seu mais alto poder, e não consegue encontrar repouso até ter feito calar esta voz, até estarem rasgadas as páginas que contêm a fé dos séculos passados. Com efeito, como se estabeleceram e se mantiveram em meio às massas o luteranismo, o calvinismo e o anglicanismo? Tudo se consumou através da substituição dos livros e fórmulas antigos por livros e fórmulas novos. Nada mais incomodaria os novos doutores; poderiam pregar à vontade: a fé das gentes estava doravante sem defesas. Lutero cumpriu esta doutrina com uma sagacidade digna de nossos jansenistas, dado que no primeiro período de suas inovações, à época em que se via obrigado ainda a guardar uma parte das formas exteriores do culto latino, estabeleceu o seguinte regulamento para a Missa reformada:

Nós aprovamos e conservamos os intróitos dos domingos e das Festas de Jesus Cristo, a saber, da Páscoa, de Pentecostes e de Natal. Nós preferiríamos de bom grado os salmos inteiros de que são tirados estes intróitos, como se fazia outrora, mas queremos bem nos conformar ao uso presente. Nem mesmo culpamos aqueles que desejam reter os intróitos dos Apóstolos, da Virgem e dos outros Santos, desde que estes três intróitos sejam tirados dos Salmos ou de outras passagens da Escritura”.

Ele tinha grande ódio dos cânticos sacros compostos pela própria Igreja para expressão pública da fé. Neles ele sentia pesado o vigor da Tradição que ele desejava banir. Reconhecendo à Igreja o direito de unir sua voz, nas santas assembleias, aos oráculos das Escrituras, ele se exporia a ouvir milhões de bocas a anatematizar os seus novos dogmas. Portanto, ódio a tudo que, na Liturgia, não era exclusivamente extraído das Sagradas Escrituras.

II. Com efeito, é o segundo princípio da seita anti-litúrgica a substituição das fórmulas de estilo eclesiástico pelas leituras da Sagrada Escritura. Ela aí encontra duas vantagens: a primeira, a de fazer calar a voz da Tradição que ela sempre teme; em seguida, um meio de propagar e de apoiar os seus dogmas, pela via da negação ou da afirmação. Pela via da negação, passando em silêncio, através de escolhas astutas, os textos que exprimem a doutrina oposta aos erros que eles querem fazer prevalecer; pela via da afirmação, pondo à luz passagens cortadas que só apresentam um lado da verdade, escondendo o outro dos olhos dos mais simples. Sabe-se, desde muitos séculos, que a preferência dada, por todos os hereges, às Sagradas Escrituras sobre as definições eclesiásticas, não tem outra razão que a facilidade que eles têm de fazer dizer pela Palavra de Deus tudo o que quiserem, apresentando-a segundo o que lhes convém. (...) Quanto aos protestantes, eles quase reduziram a Liturgia inteira à leitura da Escritura, acompanhada de discursos nos quais ela é interpretada pela razão. Quanto à escolha e à determinação dos livros canônicos, acabaram por cair no capricho do reformador, que, como último recurso, decide não somente o sentido da palavra de Deus, mas se esta palavra é verdadeira ou não. Assim, Martinho Lutero conclui, em seu sistema panteísta, que a inutilidade das obras e a suficiência da fé são dogmas a serem estabelecidos e a partir daí declara que a Carta de São Tiago é uma carta de palha, e não uma carta canônica, somente pelo fato de aí se ensinar a necessidade das obras para a salvação. Em todos os tempos e sob todas as formas, funcionará sempre do mesmo jeito: nada de fórmulas eclesiásticas, somente a Escritura, mas interpretada, escolhida e apresentada por aquele ou por aqueles que sabem tirar proveito para a inovação. A armadilha é perigosa para os simples, e somente depois de um longo tempo é que se percebe o engano em que se caiu, e que a palavra de Deus, esta espada de dois gumes, como diz o Apóstolo, abriu grandes feridas, pois foi manuseada pelos filhos da perdição.

III. O terceiro princípio dos hereges acerca da reforma da Liturgia é, digamos, depois de ter expulsado as fórmulas eclesiásticas e proclamado a necessidade absoluta de se empregar apenas as palavras da Escritura no serviço divino, visto que a Escritura nem sempre se dobra, como eles gostariam, a todas as suas vontades, fabricar e introduzir fórmulas novas, cheias de perfídia, pelas quais as pessoas sejam mais solidamente ainda acorrentadas ao erro, e todo o edifício da ímpia reforma venha a se consolidar pelos séculos.

IV. Alguém poderá se admirar da contradição que a heresia apresenta em suas obras, quando vier a saber que o quarto princípio, ou, se assim se desejar, a quarta necessidade imposta aos sectários pela própria natureza de seu estado de revolta, é uma habitual contradição frente aos seus próprios princípios. Deverá ser assim, para a confusão deles, naquele grande dia, que cedo ou tarde vem, quando Deus revelar a nudez deles à vista dos povos que foram por eles seduzidos, e também porque não é da natureza do homem ser coerente, consistente. Somente a verdade pode sê-lo. Por isso, todos os sectários, sem exceção, começam por reivindicar as prerrogativas da antiguidade. Eles querem abstrair o cristianismo de tudo o que o erro e as paixões dos homens nele misturaram de falso ou de indigno de Deus; tudo o que querem é o que é primitivo, e pretendem fazer voltar ao berço a instituição cristã. Para isto, eles podam, cortam e arrancam; tudo cai sob os seus golpes, e quando alguém esperar ver reaparecer em sua pureza primeva o culto divino, encontrar-se-á coberto de fórmulas novas que mal datam de ontem e que são incontestavelmente humanas, posto que aqueles que as redigiram ainda vivem. Toda seita sofreu esta necessidade; vimos isto nos Monofisitas, nos Nestorianos; reencontramos a mesma coisa em todos os ramos do protestantismo. Sua afetação ao pregar a antiguidade é a medida usada para fazer sumir diante de si todo o passado, e assim se põem diante do povo seduzido e lhe juram que tudo está muito bem, que o aparato papista supérfluo foi-se embora, que o culto divino retornou à sua santidade primitiva. Observemos ainda uma coisa característica na mudança da Liturgia por parte dos hereges. É que, em sua sanha inovadora, eles não se contentam em retirar as fórmulas de estilo eclesiástico, que eles menosprezam sob o nome de palavra humana, mas estendem sua rejeição até mesmo às leituras e orações que a Igreja tomou emprestadas da Escritura. Mudam-nas, substituem-nas. Não querem mais rezar com a Igreja. Excomungam, por isso, a si mesmos, e temem assim a menor parcela da ortodoxia que ordenou a escolha daquelas passagens.

V. Sendo a reforma da Liturgia realizada pelos sectários com o mesmo objetivo que a reforma do dogma, de que é consequência, segue-se que, assim como os protestantes se separaram da unidade para crer menos, eles são levados a subtrair do culto todas as cerimônias e todas as fórmulas que exprimem mistérios. Tacharam de superstição e de idolatria tudo o que não lhes pareceu puramente racional, restringindo assim as expressões da fé e obstruindo, pela dúvida e até pela negação, todas as vias que se abrem para o mundo sobrenatural. Por isso, nada mais de sacramentos, a não ser o Batismo, à espera do Socinianismo que o deixaria ao arbítrio de seus adeptos; nada de sacramentais, bênçãos, imagens, relíquias de santos, procissões, peregrinações, etc. Nada também de altar, mas simplesmente uma mesa; nada de sacrifício, como em toda religião, mas simplesmente uma ceia; nada de igreja, mas só um templo, como nos Gregos e Romanos; nada mais de arquitetura religiosa, dado que aí não há mistérios; nada de pintura ou escultura cristãs, dado que aí não há uma religião sensível; enfim, nada de poesia, num culto que não foi fecundado nem pelo amor e nem pela fé.

VI. A supressão das coisas misteriosas na Liturgia protestante produziu infalivelmente a extinção total do espírito de oração que se chama de Unção no Catolicismo. Um coração revoltado não tem amor, e um coração sem amor no máximo poderá gerar expressões de respeito ou de temor, com aquele frio orgulho farisaico. Tal é a Liturgia protestante. Sente-se que aquele que a reza aplaude a si mesmo por não ser contado no número dos cristãos papistas, que trazem Deus até a sua baixeza pela familiaridade de seu linguajar vulgar.

VII. Tratando nobremente com Deus, a liturgia protestante não tem necessidade de intermediários criados. Ela creria faltar com o respeito devido ao Ser soberano ao invocar a intercessão da Santa Virgem, a proteção dos santos. Ela exclui toda esta idolatria papista que roga à criatura aquilo que se deve rogar a Deus somente. Ela remove do calendário todos os nomes dos homens que a Igreja temerariamente inscreveu ao lado do nome de Deus. Ela tem, sobretudo, um horror àqueles monges e outros personagens dos tempos passados que aí se vê figurar ao lado dos veneráveis nomes dos apóstolos que Jesus Cristo escolheu, e pelos quais foi fundada a Igreja primitiva, a única que foi pura na fé e livre de toda superstição no culto e de todo relaxamento na moral.

VIII. Tendo, a reforma litúrgica, como um de seus principais fins a abolição dos atos e fórmulas místicas, segue-se necessariamente que seus autores devam reivindicar o uso da língua vulgar no serviço divino. Por isso, este é um dos pontos mais importantes aos olhos dos sectários. O culto não é algo secreto, dizem; é preciso que o povo entenda o que canta. O ódio à língua latina é inato ao coração de todos os inimigos de Roma. Nela eles vêem o elo entre os católicos de todo o universo, o arsenal da ortodoxia contra todas as sutilezas do espírito das seitas, a arma mais poderosa do Papado. O espírito da revolta que os leva a confiar a oração universal ao idioma de cada povo, de cada província, de cada século, já deu seus frutos, e os reformados estão diariamente a perceber que os povos católicos, não obstante suas orações latinas, têm mais gosto e cumprem com mais zelo os deveres do culto que os povos protestantes. A cada hora do dia, o serviço divino tem lugar nas igrejas católicas; o fiel que aí participa deixa sua língua mãe na porta; com exceção das horas de pregação, ele só ouve os misteriosos acentos [do latim], que até cessam de ressoar no momento mais solene, no Cânon da Missa; e, contudo, este mistério o encanta de tal forma que não inveja a sorte do protestante, embora o ouvido deste último nunca escute um som sem perceber seu significado. Enquanto o Templo Reformado reúne, com grande dificuldade, uma vez por semana, os cristãos puristas, a Igreja Papista vê incessantemente os seus numerosos altares cercados pelos seus filhos religiosos. Cada dia eles deixam seus trabalhos para ouvir as palavras misteriosas que devem ser de Deus, pois elas alimentam a fé e aliviam as dores. Admitamos: é um golpe de mestre do protestantismo o ter declarado guerra à língua sagrada; se conseguir êxito em a destruir, seu triunfo já estará bem avançado. Entregue aos gostos profanos, como uma virgem desonrada, a Liturgia, a partir deste momento, perdeu seu caráter sagrado, e o povo logo achará que não vale a pena deixar os trabalhos ou os prazeres para ir até aí e ouvir alguém falar como qualquer um fala na praça pública. (…)

IX – Tirando da Liturgia o mistério, que rebaixa a razão, o protestantismo tem o cuidado de não esquecer a consequência prática, ou seja, a libertação da fadiga e do desconforto que as práticas da Liturgia Papista impõem ao corpo. Primeiramente, nada mais de jejum e de abstinência; nada de genuflexão para rezar; para o ministro do templo, nada mais de ofícios diários a serem cumpridos, nem mesmo preces canônicas para se recitar em nome da Igreja. Tal é uma das formas principais da grande emancipação protestante: diminuir a quantidade de orações públicas e particulares. O decorrer dos fatos tem mostrado rapidamente que a fé e a caridade, que se alimentam da oração, foram sendo extintas na Reforma, enquanto elas não cessam, entre os católicos, de alimentar todos os atos de devoção a Deus e aos homens, fecundados que são pelas fontes inefáveis da oração litúrgica, realizada pelo clero secular ou regular, ao qual se une a comunidade dos fieis.

X – Como falta ao protestantismo uma regra para discernir entre as instituições papistas quais as que poderiam ser as mais hostis aos seus princípios, foi-lhe preciso cavar até os fundamentos do edifício católico, e encontrar a pedra fundamental que sustenta tudo. Seu instinto fez descobrir tudo que segue este dogma que é inconciliável com toda inovação: o poder Papal. Daí Lutero ter escrito em seu estandarte: “Ódio a Roma e às suas leis”. Ele não fazia nada mais que proclamar uma vez por todas o grande princípio de todos os ramos da seita anti-litúrgica. Daqui vem a necessidade de abrogar em massa o culto e as cerimônias, como idolatria de Roma; a língua latina, o ofício divino, o calendário, o breviário, todas as abominações da grande Prostituta da Babilônia. O Romano Pontífice oprime a razão pelos seus dogmas e os sentidos pelas suas práticas rituais; é preciso proclamar que os dogmas não passam de blasfêmia e erro, e suas observâncias litúrgicas, um meio de assegurar mais fortemente uma dominação usurpada e tirânica. Eis por que, em suas ladainhas emancipadas, a Igreja luterana continua a cantar inocentemente: “Do furor homicida, da calúnia, da ira e da ferocidade do Turco e do Papa, livrai-nos, Senhor”. Cabe aqui recordar as admiráveis considerações de Joseph de Maistre, em seu livro “Sobre o Papa”, onde ele mostra, com tamanha sagacidade e profundidade, que, não obstante as dissonâncias que isolam as diversas seitas separadas umas das outras, há uma característica que reúne todas elas: a de serem não-Romanas. Imaginai uma inovação qualquer, seja em matéria de dogma, seja em matéria de disciplina, e vereis se é possível empreendê-la sem incorrer, queira ou não queira, no apelido de não-Romana, ou se quiserdes, de meio Romana, se falta audácia. Resta saber que tipo de descanso poderá encontrar um católico seja na primeira ou na segunda das duas situações.

XI – A heresia anti-litúrgica, para estabelecer para sempre o seu reinado, tem necessidade de destruir de fato e de princípio todo o sacerdócio no cristianismo, pois ela sente que, onde há um pontífice, há um altar, e aí onde há um altar, há um sacrifício e, portanto, um cerimonial misterioso. Depois de ter abolido a qualidade de Sumo Pontífice, é preciso aniquilar o caráter episcopal, donde emana a mística imposição das mãos que perpetua a hierarquia sagrada. Resulta daí um vasto presbiterianismo, que é exatamente a consequência imediata da supressão do soberano Pontificado. Daí, não há mais um padre propriamente dito. Como a simples eleição, sem uma consagração, fará dele um homem sagrado? A reforma de Lutero e de Calvino não conhecerá outra coisa senão Ministros de Deus, ou dos homens, como se queira. Mas é impossível ficar só nisso. Escolhido e empossado por leigos, portando no templo uma toga de alguma bastarda magistratura, o ministro não passa de um leigo revestido de funções acidentais; não há nada mais que leigos no protestantismo. E assim deve ser, posto que não há mais Liturgia. Bem como não há mais Liturgia, posto que não há nada mais que leigos.

XII – Por fim, no último degrau de embrutecimento, não existindo mais o sacerdócio, dado que a hierarquia está morta, o príncipe, única autoridade possível entre leigos, proclamar-se-á chefe da Religião, e se verá os mais orgulhosos reformadores, depois de ter lançado fora o jugo espiritual de Roma, reconhecerem o soberano temporal como sumo pontífice, e colocarem o poder sobre a Liturgia entre as atribuições de direito majestático. Não mais haverá dogma, moral, sacramentos, culto e cristianismo, a não ser que agrade ao príncipe, dado que o poder absoluto lhe foi entregue sobre a Liturgia, pela qual todas aquelas coisas têm sua expressão e sua aplicação na comunidade de fieis. Tal é, portanto, o axioma fundamental da Reforma, na prática e nos escritos dos doutores protestantes. Este último traço completará o quadro, e permitirá ao próprio leitor julgar sobre a natureza desta pretensa libertação, operada com tanta violência no que tange ao papado, para estabelecer, em seguida, porém necessariamente, uma destrutiva dominação sobre a própria natureza do cristianismo. É verdade que, no começo, a seita anti-litúrgica não tinha o costume de bajular os poderosos: albigenses, valdenses, wycliffitas, hussitas, todos ensinaram que era preciso resistir e mesmo atacar todos os príncipes e magistrados que se encontrassem em estado de pecado, pretendendo que um príncipe perdia o direito no momento em que não estivesse mais na graça de Deus. A razão disso é que os sectários temiam a espada dos príncipes católicos, bispos de fora, tendo tudo a ganhar minando sua autoridade. Mas a partir do momento em que os soberanos, associados à revolta contra a Igreja, quiseram fazer da religião uma coisa nacional, um meio de governo, a Liturgia, bem como o dogma, reduzida aos limites de um país, ficou submetida naturalmente à mais alta autoridade do país, e os reformadores não tinham como deixar de prestar um vivo reconhecimento àqueles que davam, assim, o auxílio de um braço poderoso para estabelecer e conservar suas teorias. É bem verdade que aí há toda uma apostasia nesta preferência dada ao temporal sobre o espiritual, em matéria de religião; mas agem assim pela necessidade de se manter. Precisam não só ser consistentes, mas sobreviver. É por isso que Lutero, que se separou brilhantemente do Pontífice Romano, este considerado como fautor de todas as abominações da Babilônia, não teve vergonha de si mesmo ao declarar teologicamente legítimo um duplo casamento para o landgrave de Hesse, e é por isso também que o Abade Gregório encontrou em seus princípios o meio de associar, de uma vez, a Convenção inteira no voto de execução contra Luís XVI, e de se fazer o defensor de Luís XIV e de José II contra os pontífices romanos.

Tais são as principais máximas da seita anti-litúrgica. De modo algum estão exageradas. Apenas enfatizamos a doutrina centenas de vezes professada nos escritos de Lutero, de Calvino, dos Centuriadores de Magdeburgo, de Hospiniano, de Kemnitz, etc. Estes livros são fáceis de consultar, ou melhor, a obra que resultou daí está sob os olhos de todo o mundo. Cremos ter sido útil pôr à luz estas principais características. Sempre é bom ter conhecimento acerca do que é errado. O conhecimento prático e direto é, às vezes, menos vantajoso e menos fácil.

Cabe aos pensadores católicos tirar a conclusão.
Dom Guéranger
***
O texto francês utilizado para a tradução esteve disponível em:
Ele confere com o original do autor, disponível em:
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terça-feira, 26 de novembro de 2013

Dom Lefebvre, um bispo na tormenta (COMPLETO) - PT/BR



Muito se falou de Dom Marcel Lefebvre. Poucos bispos do século XX foram tão caluniados e perseguidos. Em geral, as pessoas emitem suas opiniões acerca desse homem da Igreja sem terem conhecimento do que ele representou para o seu tempo.


Ele foi o missionário da África, responsável pelo imenso desenvolvimento da Igreja naquele continente. Tornou-se professor e diretor do Seminário dos padres da Congregação do Divino Espírito Santo. Foi também eleito Superior Geral daquela Congregação, devendo comandar mais de cinco mil sacerdotes espalhados pelo mundo todo. Foi o defensor da Tradição durante e após o Concílio Vaticano II; o fundador de uma sociedade sacerdotal que já deu quase 600 padres à Igreja. Mas poucos se interessam em conhece-lo mais profundamente.

Este filme, realizado pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X, é a oportunidade de se conhecer melhor este santo bispo. Terão a oportunidade de ouvir muitos estudiosos, padres, fiéis da Africa e da Europa, testemunhando sobre a grandeza de sua alma sacerdotal.

Para quem conheceu Dom Lefebvre, assistir ao filme Dom Lefebvre, um bispo na tormenta representa um momento de emoções fortes, de saudosas lembranças dos encontros, sermões, conversas e de uma amizada toda sobrenatural, vivida no Altar de Nosso Senhor.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

A Protestantização do Concílio Vaticano II

 Conferência do Sr. Padre Franz SCHMIDBERGER
Simpósio de Teologia em Paris, outubro de 2005.
  
Nossa exposição divide-se em 4 partes:
 
1ª Resumo da posição protestante;
2ª Presença dos protestantes no Concílio Vaticano II;
3ª Influência protestante no espírito e nos documentos do Concílio;
4ª Escorço sobre o pós-Concílio e conclusão;


I. RESUMO DA POSIÇÃO PROTESTANTE
 
1. O ponto de partida do protestantismo, sua base filosófica e teológica, é sem dúvida a concepção de Lutero acerca do pecado e da justificação.
 
Para ele, corrompeu o pecado totalmente a natureza humana, não há sequer liberdade moral. Assim, nada encontra a graça de Deus que curar, transformar, divinizar, limitando-se tão-só a uma declaração exterior: Deus encobre o pecado com o manto dos méritos de seu Filho, não imputando-lhe de pecado, contudo o pecador conserva sua natureza corrompida.
 
2. De tal parecer do estado da natureza decaída, decorrem os quatro soli de Lutero:
 
a) Sola fide: salva-se o homem só pela fé; notem que, entre os reformadores, concebe-se a fé enquanto fé confiante nos méritos do Cristo Redentor, e não enquanto plena aceitação da Revelação de Deus sob impulso da graça. As boas obras – o jejum, a oração, a esmola, a penitência, a mortificação – não contribuem para a salvação, antes são sinais de fé. Exprime Lutero desta forma seu pensamento de modo categórico: “Peca fortemenTe e crê mais fortemente ainda, e tu serás salvo”.
 
b) Sola gratia: com sua natureza sem liberdade moral, o homem pe radicalmente incapaz de contribuir à salvação; Deus obra sozinho, o homem permanece passivo.
 
c) Solus Deus: opera Deus sozinho nossa salvação; não há mediação da Igreja, do magistério ou do sacerdócio, menos ainda intercessão dos santos, por exemplo o da Santíssima Virgem. Se o homem não diligencia para sua própria salvação, como poderia obrar para a do próximo?
 
d) Sola scriptura: porque é impossível um magistério que exponha a Revelação de Deus, não pode existir Tradição como fonte da Revelação; porque Deus faz tudo, ilumina diretamente a alma dos crentes para que possam compreender a Santa Escritura, que contém toda a Revelação.
 
3. Destes quatro soli decorre o sistema protestante:
 
a) A estrutura da Igreja: Não constitui um corpo vivo a dar a salvação às almas, mas não passa de um serviço de caridade cuja hierarquia dá ensanchas à uma democratização: todos somos povo de Deus, o sacerdócio ministerial absorve-se no sacerdócio geral dos fiéis.
 
b) A fé e seu conteúdoaxiomas filosóficos. A Igreja e os santos, em particular a Santíssima Virgem Maria, devem dar lugar a um falso cristocentrismo. Por um lado, cada fiel pode ler a Santa Escritura e interpretá-la sob inspiração do Espírito Santo; por outro lado, depara-se com uma multidão de diferentes confissões – a Igreja, enquanto única vida de salvação, há de ser substituida pela multidão das confissões e modalidades de fé, o magistério pelo trabalho dos teólogos, sob influxo da exegese liberal e da “Formengeschichte”.
 
Se não se encontra explícita na Santa Escritura uma tradição, ela não pode existir.
 
O livre exame deve substituir a lei da fé; força é abandonar a idéia do estado católico, pois que contradiz o livre arbítrio; decorre daí a exigência da liberdade religiosa.
 
A ordem objetiva cede lugar ao subjetivismo e ao individualismo, o bem comum à realização epssoal, i. é, ao personalismo.
 
A Igreja deve abandonar o poder temporal e a dominação; deve sobretudo abandonar o Estado Católico enquanto fato, pois que se opõe á propagação do protestantismo.
 
O laço harmonioso entre a natureza e a graça não se mantém. No protestantismo, existe uma oscilação entre, por um lado, o fideísmo (Karl Barth) e, por outro lado, o racionalismo (Bultmann) e o naturalismo com a laicisação da sociedade.
 
Há mister de abandonar a romanidade expressa na língua latina, o Romano Pontífice e a Cúria, orientando-se em direção a Igrejas nacionais.
Igualmente, há de se rejeitar a escolástica, sistema esclerosado oposto ao Evangelho vivo.
 
c) O culto: acento na palavra e na Eucaristia-refeição, abandono da idéia de sacrifício expiatório: a liturgia não é culto, é antes instrução e assunto de toda a comunidade.
 Demais, há necessidade de retorno a formas de culto mais simples, abandonando o triunfalismo.


II. PRESENÇA DOS PROTESTANTES NO CONCÍLIO VATICANO II
 
Era da responsabilidade do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, sob o cardeal Bea, preparar os convites para o Concílio às “Igrejas” não católicas, comunidades eclesiásticas, observadores e delegados, enviando os convites em nome do Papa1. Encontravam-se na primeira sessão do Concílio os seguintes representantes do protestantismo:
 
- Comundiade anglicana: 3 representantes;
- Aliança Mundial Luterana: 3 representantes;
- Aliança Mundial da Igreja Reformada, Igreja Presbiteriana: 3 representantes;
- Igreja Evangélica Alemã: 1 representante;
- Convenção Mundial das Igrejas de Cristo: 1 representante;
- Friend’s World Committee for Consultation (Quakers) : 1 representante;
- International Congregation Council: 2 representantes;
- Conselho Mundial Metodista: 3 representantes;
- Conselho Ecumênico das Igrejas de Genebra: 1 representante;
- Associação Internacional para o Cristianismo Liberal e a Liberdade Religiosa: 2 representantes;
 
Demais, participaram outros convidados do Secretariado para a Unidade: Roger Schutz, prior da comundiade protestante de Taizé e seu confrade Max Thurian; o Pr. Cullmann, da Universidade de Bâle e de Paris; o Pr. Berghauer, da Universidade Protestante de Amsterdan. Em suma, um total de 23 representantes.
 
Na carta-convite definem-se os estatutos e os papéis na forma seguinte:
 
a) “Os observadores fornecessem às Igrejas separadas de Roma informações sobre o Concílio;
b) Eles podem participar das sessões públicas e das sessões gerais fechadas, nas quais se discutem os decretos do Concílio; não participam das sessões das Comissões, salvo em casos particulares e com permissão especial;
c) Não têm direito à palavra nem ao voto;
d) O Secretariado para a Unidade dos Cristãos serve de intermediário entre os organismos do Concílio e os observadores para transmitir a estes as informações necessárias, a fim de que possam com mais facilidade e eficácia acompanhar os trabalhos do Concílio. Demais, organiza as entrevistas com pessoas de escol, por exemplo os padres do Concílio acerca dos temas ali discutidos.
 
Temos agora a presença viva dos protestantes. Já estavam presentes no Concílio de forma indireta por meio dos padres e teólogos que sabiam há muito cooptados a suas idéias, representando-os mais ou menos abertamente: os cardeais Bea, König, Frings, Döpfner, Liénart, Alfrink; especialistas como Rahner, Hans Küng, Edouard Schillebeeckx, Congar.
 
Alguns trechos das obras de Congar servem-nos de prova2:
 
“Em Saulchoir, tinham interesse por Lutero, de forma bem diferente da de Denifle ou Grisar. Durante uma segunda estada na Alemanha, visitei os lugares marcantes do luteranismo, os quais me atraiam”. Devota grande admiração ao reformador: “Lutero é dos maiores gênios religiosos de toda a história. Ponho-lhe neste quesito no mesmo patamar de Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino ou Pascal. De certo modo, é ele ainda maior. Repensou todo o cristianismo. Lutero fora um homem de Igreja.” Donde vem tal admiração por um homem cujo gênio era o de destruição? Vem de que Lutero “era incapaz de receber algo que não viesse de sua própria experiência.” [...]
 
Citemos ainda o cardeal Ratzinger, grande admirador de Karl Barth. Em 1986, numa carta à Theologische Quartalsschrift, Tübingen, escrevera isto:
 
“ [...] De várias maneiras, não se deve considerar um bem para a Igreja Católica, na Alemanha e fora dela, o fato de que a seus flancos existisse o protestantismo e sua liberdade e piedade, seus conflitos e a grande exigência espiritual?3
 
Anos mais tarde, ele concelebrará em Haburgo as vésperas com a Sra. Jespen, bispa protestante!
 
III. A INFLUÊNCIA DOS PROTESTANTES SOBRE O CONCÍLIO
 
Com tamanha presença de protestantes no Concílio – presenças direta e indireta – como espantar-se da influência sobre o Concílio e seus documentos? Citemos-lhe alguns para fundamentar a afirmação:
 
1. O decreto “Sacrosanctum Concilium” sobre liturgia
 
Já no artigo 5, encontramos a noção de mistério pascal, que põe a tônica da Redenção na Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo e arrefece a realidade do sacrifício expiatório da liturgia.
 
No artigo 6, mencionam o mistério pascal duas vezes.
 
No artigo 7, equiparam a presença do Cristo na Santa Missa e na substância transubstanciada com a presença no ministro da ação litúrgica, na virtude dos sacramentos, na palavra, ou com a presença que há onde duas ou três pessoas estiverem reunidas em seu nome. Uma tal ordem de coisas é um empréstimo manifesto dos protestantes.
 
No artigo 22, há clara descentralização da competência, em matéria litúrgica: a partir de agora é o bispo local, e sobretudo a conferência episcopal as estâncias decisórias.
 
Nos artigos 24 e 51, fala-se da grande importância da Santa Escritura na liturgia.
 
Convida o artigo 34 à reforma dos ritos para que observem o esplendor em nobre simplicidade, e sejam limpos de repetições. Vemos aqui claramente a influência racionalista e antiliturgista – já que a liturgia vive de repetições, como vemos por exemplo nos ritos da Igreja do Oriente, nas ladainhas e no rosário.
 
Os de número 36 e 54 versam da introdução da língua vernacular na liturgia, sem dar os precisos limites para ela na Santa Missa.
 
No artigo 37, distinguimos já a inculturação e a presumida unidade na pluralidade litúrgica, logo um distanciamento da verdadeira unidade da Igreja e antes de tudo do espírito romano.
 
artigo 47 não se vale, na designação do Santo Sacrifício da Missa, nem da noção de “representatio” do Concílio de Trento, nem da de “renovação” dos últimos Papas, mas antes de uma “duração”. Em linguagem ecumênica, o sacrifício e o sacramento são nomeados como um só.
 
Sugere o artigo 55 dar em certas ocasiões a Eucaristia sob as duas espécies, à moda dos protestantes.
 
artigo 81 exige a supressão do sombrio pensamento acerca da morte, em favor de outras cores litúrgicas diferentes do negro. Ora, uma orientação que tal vai ao encontro do aplauso dos protestantes, que não conhecem nem purgatório, nem oração dos defuntos.
 
Num lanço d’olhos sobre tal esquema, constata-se o espírito racionalista, antilitúrgico e anti-romano, em tudo de mentalidade protestante.
 
2. A constituição dogmática sobre a Igreja “Lumen Gentium”
 
Para começar, diz o artigo 8 que a Igreja do Cristo “subsiste na Igreja Católica”, expressão nefasta e prenhe de conseqüências. Ora, é um pastor protestante, Schmitt, que propusera substituir o est de identificação entre a Igreja do Cristo e a Igreja Católica pela expressão relativista subsistit in.
 
No capítulo 2, artigos 4 a 16, fala-se, antes do mais, da Igreja enquanto povo de Deus, e tão-só no terceiro capítulo se fala da hierarquia, como se ela fosse o fruto da comunidade e um serviço para ela
 
No artigo 10, deduz-se do sacerdócio do Cristo o sacerdócio comum dos batizados, e apenas depois o sacerdócio ministerial.
 
No artigo 21, o sacramento da Ordem se não concebe desde o Santo Sacrifício da Missa, mas da prédica e da administração dos sacramentos.
 
O pior atentado contra o primado papal aparece no artigo 22, com a afirmação da dupla autoridade da Igreja: dum lado Pedro, doutro o colégio dos bispos com e sob Pedro. Felizmente, corrigiram este erro gravíssimo na “nota prævia explicativa” acrescentada ao texto mesmo do Concílio, mas nem o novo direito canônico, nem o catecismo da Igreja Católica e seu Compendium repisaram a nota.
 
Concede o artigo 26 o diaconato permanente a homens casados. Fendeu-se pois o bastião do celibato eclesiástico, que nos distingue visivelmente dos protestantes.
 
O inteiro teor do quarto capítulo, i. é, os artigos 30 a 38, versa dos laicos antes de mencionar os religiosos, de que tratam apenas no quinto capítulo. O protestantismo detesta a vida consagrada, em particular a vida contemplativa.
 
Aceitou o Concílio as graves restrições de Karl Rahner e dos senhores Ratzinger, Grillmeier e Semmelroth contra um esquema próprio sobre a Santíssima Virgem. As explicações acerca da Santíssima Virgem encontram-se agora no capítulo 8 da constituição sobre a Igreja, onde omite-se deliberadamente o título de “co-redentora”; não reconheceram ainda à Santíssima Virgem o de ‘mediadora”, cuja utilização apenas se menciona.
 
3. O decreto sobre o exumenismo “Unitatis redintegratio”.
 
A princípio, notemos que a noção de ecumenismo vem do protestantismo, em que se observa esforços ecumênicos já no séc. XIX para remediar sua dilaceração insolúvel.
 
Diz o artigo 3 que as comunidades separadas da Igreja Católica não estão em comunhão plena com a Igreja, mas intentam mesmo assim que exista uma como continuidade de comunhão, pois que os fiéis se justificam no batismo, incorporando-se ao Cristo. Por isso, diz o decreto, reconhecem-nos a justo título como irmãos no Senhor. Cabe a cada qual uma parcela de culpa na separação. A afirmação de que pertencem de jure à Igreja Católica os elementos de santificação nestas comunidades é uma melhoria inserida pelo Papa pouco antes da publicação do decreto.
 
No parágrafo 4º, diz-se que estas comunidades, enquanto tais, são meios de salvação, significando isso duas coisas:
 
1) elas são importantes para a salvação de seus membros;
2) em geral, possuem uma função soteriológico-histórica.
 
Essas afirmações relativistas estão entre as piores do Concílio como um todo.
 
No artigo 4 estatui-se que o trabalho ecumênico não se relaciona com o favorecimento das conversões individuais; encontra-se afirmação semelhante na Constituição sobre a Igreja, artigo 9, finis. Substituem assim a missão que legou Jesus Cristo pelo esforço de coexistência pacifica entre todas as denominações e religiões, à moda protestante.
 
artigo 7 revela-nos que não há ecumenismo verdadeiro sem conversão interior, desta feita mistura-se ortodoxia e ortopraxia, o lado objetivo e o subjetivo.
 
artigo 8 não só permite a oração em comum com os “irmãos separados”, mas a recomenda explicitamente, como testemunho qualificado dos laços existentes.
 
Exige o artigo 10 o ensinamento da teologia sob o ângulo ecumênico, em particular no que tange à história. Deste modo, a teologia controversista e apologética contra o protestantismo está condenada à morte.
 
No artigo 11 depara-se com a afirmação nefasta da hierarquia das verdades. É forçoso sublinhar que esta expressão ambígua clarificou-se em 1973, por obra do Santo Ofício, em sentido católico. Não quer ela dizer que uma verdade é mais importante que outra, mas que uma é base da outra.
 
Apesar de no artigo 21 apresentarem a Santa Escritura como instrumento excelente para o diálogo, há de se perguntar de que modo se deve conduzir este diálogo com os subjetivistas protestantes, em que cada um é seu próprio magistério. Demais, neste artigo conferiram ao magistério autêntico um papel restrito, não constituindo mais a norma para o cânon e a interpretação da Santa Escritura.
 
No artigo 22 atribui-se à ceia protestante, não obstante a ausência do sacramento da Ordem, um certo valor positivo.
 
É de se notar também que não tratam da questão dos casamentos mistos, deixando de ensinar aos católicos que tais matrimônios só se contraem perante um padre católico, que devem batizar os filhos na Igreja Católica e educá-los nesta fé.
 
4. A constituição dogmática sobre a Revelação Divina “Dei Verbum”
 
Esta constituição abandona a doutrina católica das duas fontes da Revelação, para aproximar-se do sola scriptura dos protestantes. Apresentam-nos de imediato no capítulo 1 a Revelação não mais como comunicação das verdades sobre Deus e suas intenções salvíficas, mas como auto-comunicação de Deus; nisto põem em evidência a passagem da perspectiva objetiva à perspectiva subjetiva.
 
No artigo 5, descrevem a fé como encontro pessoal com Deus, e dom do homem para com Ele; não se deveria mais considerar a tradição como complemento quantitativo e material da Escritura. Ela teria apenas uma dupla função de reconhecimento do teor do cânon e certidão da revelação. De modo ambíguo, não apresentam o magistério abaixo da palavra de Deus, senão que a seu serviço.
 
Reconhece-se fortemente no artigo 12 a exegese moderna com sua “Formengeschichte”, embebida no espírito protestante de Bultmann. Não mais se atribui à Santa Escritura a inerrância, mas só dizem que ela ensina a verdade.
 
artigo 19 fala que os Evangelhos oferecem o veraz e o sincero – no texto originam, acrecentaram: “alimentados pela força criativa da comunidade primitiva”, suprimido após o protesto de muitos dos Padres do Concílio. Na 2ª frase deste artigo, assume o Concílio sem meias palavras a exegese moderna: os apóstolos pregavam uma compreensão mais plena do Cristo, os redatores dos Evangelhos “redigiram” o material desta prédica, i. é., material que eles selecionaram, resumiram e atualizaram.
 
No artigo 22, encorajam-se as traduções ecumênicas da Bíblia, traduções estas que, de fato, são as utilizadas hoje em dia. Todavia, há mister de se perguntar como, em textos que tais, se formula e comenta a Anunciação de Maria; o mesmo vale para os irmãos de Jesus, e para Mateus 16, 184.
 
5. A constituição pastoral “Gaudium et Spes”.
 
Dela só veremos acerca da inversão dos fins do casamento, nos números 49 e 50. As conferências episcopais da Alemanha e da Áustria declararam, à guisa de comentário, que é a consciência dos esposos que constitui a norma suprema, em vez de dizer que a norma suprema é a doutrina da Igreja, e a consciência pessoal só se pronuncia na aplicação.
 
6. O decreto acerca da responsabilidade pastoral dos bispos da Igreja “Christus Dominus”.
 
Atribui-se no artigo 38 à Conferência Episcopal, em todos os casos, um direito que é obrigação. Assim, abre-se a porta à democratização e à descentralização.
 
7. Decreto sbre o ministério e a vida dos padres “Presbyterorum ordinis”.
 
No artigo 2, dá-se a primazia, como na Lumen Gentium, ao sacerdócio dos batizados, e somente após ao sacerdócio ministerial, como se o segundo emanasse do primeiro – isso é idéia protestante.
 
8. O decreto sobre a formação dos padres “Optatam totius”
 
No artigo 15, dá-se férias à “philosophia perennis”. Nos estudos, o procedimento não seria mais o analítico, antes o sintético; tem-se em conta apenas a gênese dos diferentes sistemas. Vemos aqui na raiz a passagem da ontologia e da metafísica em direção ao empirismo e a história da filosofia.
 
9. A declaração sobre a liberdade religiosa “Dignitatis humanae”
 
Foi de grande interesse para os protestantes esta declaração, e isto sob duplo aspecto, enquanto princípio e fato:
a) enquanto princípio, substitui a ordem objetiva pela livre consciência;
b) enquanto fato, abole os Estados Católicos, que serviam de entrave à penetração das seitas protestantes. Assim, vê-se o Conselho Mundial Ecumênico das Igrejas Protestantes, em Genebra, dirigir-se à presidência do Concílio, em setembro de 1965, pouco antes da quarta e última sessão, para pedir com instância a proclamação da liberdade religiosa, o que se deu a 7 de setembro de 1965
 
IV. APRECIAÇÃO SOBRE A ATUAL SITUAÇÃO DA IGREJA
 
Uma influência tão maciça do protestantismo no Concílio só poderia resultar numa Igreja protestantizada.
 
1. A estrutura da Igreja
 
a) O poder central de Roma diminui consideravelmente, em favor das Conferências Episcopais, que cada vez mais se constituem em igrejas nacionais. O duplo poder da Igreja – por um lado o Papa, por outro os colégios de bispos com o Papa, como se depara na Lumen Gentium e na nota prævia explicativa, nota esta que evita o pior – reaparece nos cânones 336 (direito romano 1983), no Catecismo da Igreja Católica, nº 883, e no novo Compendium, questão nº 183.
 
Na encíclica Ut unum sit, de 25 de maio de 1995, o Papa João Paulo II diz o seguinte:
 
“ [...] O Espírito Santo nos dê a sua luz, e ilumine todos os pastores e os teólogos das nossas Igrejas, para que possamos procurar, evidentemente juntos, as formas mediante as quais este ministério possa realizar um serviço de amor, reconhecido por uns e por outros” 5. (DC 18 de junho de 1995 n° 2118, p. 593 § 95)
 
b) Por onde se verifique a democratização ad Igreja, a começar nas paróquias, pelos conselhos paroquiais, nas dioceses, e até nos sínodos de bispos em Roma. Existe, de feto, uma hierarquia paralela.
 
c) É obvio que os inovadores desprezam o monaquismo. Nos Estados Unidos, a vida religiosa está em vias de desaparecer completamente. A vida consagrada se encontra, onde ainda ela existe, distentida no exercício das obras sociais. Nas orações festivas dos fundadores das Ordens, no Novo Ordo, faz-se silêncio sistemático da glória do fundador e da graça da fundação.
 
2. A fé
 
a) Hoje em dia, a fé na unidade e no caráter absoluto da Igreja está, até entre católicos, posta em xeque ou negada.
 
b) Introduziu-se um subjetivismo malicioso, não apenas na consciência geral, mas até nas dos católicos. O cardeal Ratzinger, na homilia de abertura do conclave, a 18 de abril, falou da “tirania do relativismo”. Ora, o ecumenismo é justamente o relativismo religioso.
 
c) Caso todos os fiéis, pela graça do batismo, estejam unidos entre si, duma vez por todas, como afirma o Papa João Paulo II, então a graça é inalienável, o que equivale à uma heresia. Ora, encontramos hoje na Igreja tal otimismo salvífico, que esquece totalmente o julgamento de Deus e a possibilidade de danação.
 
d) Na declaração comum sobre a justificação, de 31 de outubro de 1999, pretende-se que o homem seja pecador e santo ao mesmo tempo. Só há como fundamentar tal concepção na noção protestante da justificação.
 
e) Certos membros da hierarquia sentem falta dum espírito de secularização. Não foi Lutero o primeiro representante deste espírito? por exemplo, no axioma: “o casamento é um fato puramente secular”.
 
f) Mais importa a veracidade, a sinceridade, que a verdade. Há pois uma passagem da ordem ontológica à ordem moral. O cânone 844 do novo direito canônico é um reflexo disso: para conferir os sacramentos da Penitência, Extrema-Unção, Eucaristia a não-católicos, basta a crença nestes sacramentos. Como a Penitência e a Extrema-Unção não interessam aos protestantes, basta-lhes acreditar na presença real para comungar conosco. Não se exige mais a fé de adesão à toda a Revelação, mas apenas a sinceridade duma fé subjetiva.
 
g) A harmonia entre a graça e a natureza por todo lado está corrompida, assim como a identidade entre Jesus de Nazaré e o Cristo da Fé. O protestantismo, sempre a oscilar entre o racionalismo e o fideísmo, nega – mormente seus teólogos – a divindade do Cristo. Para os fideístas, a religião não passa de sentimento que se diversifica em mil tipos de pentencostalismos. Nesta mesma ordem, o bem comum dá lugar à auto-realização.
 
h) Em espiritualidade, há um distanciamento notável do espírito de sacrifício, de penitência e de oração.
 
i) A devoção à Santíssima Virgem e os Santos está quase que completamente enquadrada do espírito moderno.
 
3. O culto
 
As três realidades ontologicamente ligadas entre si, a saber, o altar, o Sacrifício e o pader, são substituídas por três outras realidades também ligadas entre si: a mesa, a refeição, o presidente.
 
A primeira versão da definição da missa, no Novus Ordo Missae, definição em tudo protestante, encontra-se exatamente na mesma linha do nº 7 da Constituição sobre a Liturgia Sacrosanctum Conclilium. Na nova liturgia, fala-se muito, mas os aspectos da oração, do sacrifício e do culto diminuíram deveras.
 
CONCLUSÃO
 
Segundo a enciclopédia do ano 2000, há atualmente no mundo 33.820 denominações protestantes diferentes. No fundo, teria de dizer que existem tantas denominações quantos protestantes, pois que cada qual é seu próprio magistério e pastor. Com o Concílio, e após ele, assumiu a Igreja de tal forma os postulados protestantes que ela mesma está quase a tomar o caminho da autodissolução. Que o Senhor da Igreja faça-nos a graça duma reforma rápida e enérgica, uma reforma in capite membris, conforme o exemplo do Concílio de Trento.
 
Dizia há pouco um prelado da Cúria Romana que deste Concílio só uma coisa restava: uma grande confusão. O cardeal Stickler dizia-se que um dia seriam obrigados a fazer uma revisão do Concílio, e nossa Fraternidade poderia contribuir nela. Estes simpósios, organizados aqui em Paris, são uma magnífica ocasião de pôr mãos à obra.
 
 
Tradução: Permanência


 


Fonte:
http://permanencia.org.br