ALCANCE JURÍDICO DA BULA “QUO PRIMUM”
Pe. Raymond Dulac
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I – NOTAS PRELIMINARES
1 – Se a Bula promulga uma verdadeira lei, esta será uma lei humana, cujo valor provem, não da natureza das coisas nem da vontade revelada de Deus, mas certamente de uma refletida escolha do legislador humano.
2 – Este deverá, então, manifestar da maneira mais clara e completa que lhe for possível, a natureza e a extensão de sua vontade:
1º) Dizer que promulga uma verdadeira lei, criando uma obrigação jurídica. Não se trata, pois, de um simples desejo ou recomendação, nem de uma “diretiva”, ou mesmo talvez, de uma vontade formal, mas vontade que não se declarasse como impondo uma ordem que obriga seus súditos.
2º) Em seguida, delimitar o campo de aplicação de sua lei quanto ao tempo, lugares e pessoas.
3º) Precisar, se for o caso, as modalidades da decisão legislativa: o que ela manda, o que permite e, talvez certos privilégios que concede ao lado da lei comum.
4º) No caso em que a prescrição não legisla sobre matéria inteiramente nova, precisar a relação da presente lei à lei ou aos costumes precedentes:
a) simples derrogação parcial;
b) simples abrogação.
5º) Como a lei habitual, não escrita, é munida de uma força que lhe é própria, decidir expressamente o que a nova lei dela conserva ou suprime.
3 – Para a expressão formal, oficial, destas diversas vontades, há certas “regras de direito”, um vocabulário próprio, um “própria verborum significatio” que os juristas conhecem bem. A Igreja jamais as desprezou, pois são a garantia única, ao mesmo tempo contra o despotismo arbitrário e contra a anarquia.
Estava reservada à “Igreja pósconciliar” desprezar estas regras, o que ela chama de “juridismo”, isto é, em todas as matérias (dogmática, ética, disciplinar) desprezar a expressão clara, honesta, leal do pensamento e das coisas.
O Superior hierárquico “atualizado”, não ousando mais comandar, exprime-se de maneira bastante ambígua para ser entendido ou não entendido. Assim ele pode, de acordo com a opinião que “espera”, ora recuar, ora avançar em sua vontade original, sem nunca perder a autoridade porque ele a encobriu. Este novo tipo de autoridade recebeu um novo nome: “Serviço”. O melhor seria dizer “self-service“, cada um, de alto a baixo, servindo a sua própria vontade.
É assim que o legislador do novo Breviário não diz mais, como o cânon 135 do Código de Direito Canônico:
“Os clérigos que estão nas Ordens sagradas têm por obri- gação recitar todos os dias as Horas Canônicas“.
Ele diz: os clérigos se desobrigarão. Será que a “obrigação” do Breviário subsiste? Sim ou não? – Sim, acaba de notificar o Secretário Bugnini: Não há nada mudado, a não ser a palavra. Porque a mudaram? – Porque, diz ele:
“a mentalidade moderna prefere obedecer a convicções e não a obrigações“. (“L’Osservatore Romano“, 24-11-71).
Como o autor desta astuciosa substituição verbal confessou-a em público e publicou-a no jornal, a quem pretende ele enganar?
Estas notas preliminares não nos distraíram do nosso assunto. Nosso leitor estará melhor preparado para conhecer o alcance jurídico da Bula que ordena o Missal restaurado de Pio V, se já conhece as condições formais tradicionais de toda obrigação jurídica, e, ao contrário, o espírito, o vocabulário e as “espertezas” dos ordenadores do Missal reformado de Paulo VI.
II – A BULA PROMULGA UMA VERDADEIRA LEI
1 – Uma lei contendo uma obrigação jurídica expressa nos termos tradicionais do direito: nós os sublinhamos ao longo da nossa tradução.
2 – Esta lei não é apenas uma determinação pessoal do Soberano Pontífice, mas notadamente em ato conciliar. Pio V se refere explicitamente aos decretos do Santo Concílio de Trento, que lhe remetera este encargo, depois que os Padres tivessem acertado as modalidades por eles desejadas. Daí o título oficial de nossos Missais: “Missale Romanum ex DECRETO S.C. Tridentini RESTITUTUM, S. Pio V jussu editum”. O Concílio decretou sua restauração, o Papa ordenou sua publicação.
3 – A vontade do legislador aparece na sua Bula, sob modalidades variadas, detalhadas ao curso da longa enumeração final, e da qual anteriormente havíamos observado que não se trata de uma redundância enfática:
“… Hanc, paginam Nostrae permissionis, statuti, ordinationis, mandati, proecepti, concessionis, indultti, declarationis, voluntatis, decreti et inhibitionis…“
O leitor pode facilmente pôr cada um destes onze termos à frente de um enunciado da Bula: excelente exercício de atenção respeitosa.
4 – A Bula especifica minuciosamente as pessoas, o tempo, os lugares submetidos a estas diversas disposições.
5 – A obrigação é sancionada por penas expressas.
6 – O Pontífice não promulga a lei de um novo Missal, ele restaura o primitivo, restituído. Entretanto, ele vai claramente significar o que derroga, parcialmente, do passado e, de outro lado, o que abroga totalmente.
Observamos o quanto a cláusula final do “Não obstante” é, a este respeito, precisa, específica e rigorosa, não se satisfazendo com a menção puramente genérica das leis e costumes precedentes que quer abolir, mas designando-as pelo seu próprio nome.
III – A BULA RESPEITA OS DIREITOS ADQUIRIDOS
Traço característico do verdadeiro chefe: mais sua ordem é firme quando ele impõe deveres, mais também ele é atento a respeitar os direitos, não apenas os direitos gerais e absolutos da pessoa abstrata, mas os direitos históricos dos indivíduos ou das comunidades particulares, mesmo adquiridos por simples costume.
Pio V confirma assim, dois direitos:
1º – O direito das Igrejas ou Comunidades que foram beneficiadas com um Missal próprio, aprovado desde a sua instituição.
2º – Mesmo direito reconhecido a um Missal igualmente distinto do Romano, quando ele pode justificar seu uso de fato, há mais de 200 anos.
Esta confirmação (“nequaquam auferimus“) não deve ser confundida com a “permissão” nem com o “indulto” que seguem, trata-se aqui de direitos já existentes que a Bula se contenta em manter.